1.9.09

Biografia de Antonio Guaicurus Brasileiro


Casa 467 da Guaicurus

“Ainda me lembro de gols magistrais que nasciam de minha velha chuteira de couro, onde as traves eram somente duas sandálias demarcando o limite do ápice daquela brincadeira em que, frente a janela de minha casa, se dava a vida por toda tarde; de minha mãe exigindo minha presença para janta após longos mergulhos nas transparentes águas de um tal rio Arrudas, logo na virada da esquina de minha rua; dos imprecisos tiros de chumbinho que tangenciavam asas e ninhos de rolinhas devido a minha incapacidade de manuseio bélico. De minha infância em uma certa casa instalada na Rua Guaicurus, 467.”

“BRASILEIRO, Antônio Guaicurus. Uma vida para a vida toda. Belo Horizonte: Ed. Mineirinha, 1996. p. 18.”

“Podre! Conjunto de letras que designam em sua mais perfeita significância, os mesquinhos passageiros assíduos desta rua imunda e inabitável para qualquer ser que preze, mesmo que subconscientemente, o ínfimo de qualquer beleza ou alegria. Descrevo enojado, o espaço em que vivi a maior parte de minha ordinária vida. Recordo-me de vorazes vozes de jogadores desalmados, a escória da sociedade, envoltos numa teia, onde se apostavam pratas, pratos, vidas, artifícios, artefatos, artesanatos, escolhas e humanidades. De minha deturpada vida em uma casa instalada na Rua Guaicurus, 467”.

“BRASILEIRO, Antônio. Uma vida para a vida toda. Belo Horizonte: Ed. Mineirinha, 1996. p. 27.”



Trechos retirados de minha biografia, ”Dias belos, noites obscuras”, que descrevem momentos de quando ainda residia no centro da capital mineira, Rua Guaicurus 467, entre as ruas Rio de Janeiro e São Paulo. Conto, nostalgicamente, um pouco de minha vida, que me levou a escrever este único livro, em 1996, após me mudar para Milho Verde-MG na região do Serro, localizada a 42 km da cidade de Diamantina.

Nascido em Belo Horizonte, em 1949, cresci sendo educado por minha mãe, lusitana e professora de português, até que, ao completar dez anos, ingressei na Escola Estadual Governador Milton Campos, vulgo Colégio Estadual Central. Nesta época de minha infância, passava os dias brincando, com vizinhos e amigos, de futebol, tiro ao pássaro, bolas de gude, bentialtas e pega-pega no longo corredor externo lateral de minha casa, por onde se entrava, e, também, no quintal perto do escritório de marcenaria. Ao entardecer, ia para sala e, junto a meu pai, apreciava música clássica e popular brasileira, tocada numa vitrola, colocada na quina do cômodo, abaixo de um pôster do Clube Atlético Mineiro, referente à recente conquista do título de “Campeão do Gelo” na França. Criei gosto por música. Ouvia todos os estilos, mas preferia clássica e moda de viola. Adquiri um violão aos 13 anos. Fascinado pelo instrumento, recusava vários convites de anfitrear os jogos e brincadeiras com meus amigos, para ficar no quintal de casa, ensaiando as primeiras canções retiradas de um livrinho que meu pai me presenteara.

Em minha adolescência, após as obrigações escolares, ia, com frequência, ao ateliê de meu pai, e lá ficava a tocar e cantar, enquanto ele fabricava suas marionetes de madeira, revestidas de pano, preenchidas com algodão, até a hora em que minha mãe chamava-nos para jantar. Uma família bem harmoniosa.

Um dia, descendo a Rio de janeiro, no caminho de volta da escola, avistei, ao longe, aquelas pernas negras, um metro de coxa mostrada pela saia que não passava de 25 centímetros. Abismado com tal imagem, fui ate lá para satisfazer meu interesse. Conversei com aquela musa de cabelos pretos e cacheados e, em pouco tempo, a acompanhei a seu quarto perto de onde nos encontramos. Em meus 16 anos de vida, nunca tinha visto tão exuberante corpo e atitude tão fútil e simplória, porém muito poderosa. Descobrira ali os instigantes prazeres carnais, que desenvolveram em mim, certo tipo de carência e vicio.

Aos vinte e poucos anos, cursava a Escola de Musica da Universidade Federal de Minas Gerais e tocava quatro instrumentos. Em reuniões quase diárias com amigos, algumas incluindo meus pais, discutíamos política, futebol, filosofia, literatura e, algumas vezes, até religão, sempre na companhia de músicas e composições loucas e desritmadas, sob a influência simultânea de autores como Mozart, Jim Morrison, Antônio Nóbrega e Clube da Esquina. Nas noites, saciava-me no topo de lindas moças nuas e pagas, para depois, com alguns amigos - das ruas ou não -, ficar na companhia das alcoólicas. Bebia cerveja, cachaça, rum, conhaque e, em ocasiões, ate uísque, bancado pelo meu trabalho como músico e às vezes com auxilio monetário de meus pais. Embriagado, não somente pelo álcool, muitas vezes entrava em brigas e confusões para proteger minhas “namoradas” de pessoas violentas e burras, que não gozavam as prazerosas noites da mesma forma que eu. Comecei a gostar de tais desentendimentos com outros, e a criar situações, em que pudesse descontar socos, pontapés e garrafadas.

Ainda na década de 70, me formei em violão. Comecei a compor músicas com ajuda literária de minha mãe e das experiências vividas numa boemia suja e em ebulição. Compunha também músicas circenses e para teatro e dança. Viajava muito para vilarejos próximos à capital e para o interior, a trabalho e lazer, mas prezava mesmo minha cidade e vizinhança. Cada vez mais noturno, fazia parte de um grupo musical, tocando em bares por contratação, virando noites junto a sexo, drogas e rock'n roll, e também em lutas e algazarras. Alguns morriam. Lembro-me bem do primeiro que vi sendo assassinado. Em meio a uma discussão como de outras noites, entre trocas de socos e cadeiradas, um homem, humilhado pelo quase nocaute, sacou uma arma e, visando à cabeça de seu adversário, puxou o gatilho explodindo em sangue e ira, o cérebro de Barnabé, morador dos passeios, com quem, em outros carnavais, troquei prosas e risadas, pagando-lhe pingas em série. Após este, outros eventos viriam e eu, acabei me acostumando, porém sempre perplexo a cada ocorrência como esta.

Nos anos 80, promovia oficinas, intervenções e apresentações musicais em parceria com grupos de música, teatro, circo e dança, tendo como palco praças, bairros e cidades interioranas, com apoio da Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Já em casa, passava horas sentado na janela lendo romances, artigos, poesias e cordéis, a beber aguardente de cana curtido em erva cidreira, pertencente a meu pai. Gostava de Guimarães Rosa e Patativa do Assaré e, sempre encantado pelas obras regionais, discutia com minha mãe, textos destes e outros autores.

Em 1987, lancei meu quarto e último CD que levava como título, “Nas redondezas da historia”, com uma visão crítica e desiludida da sociedade e para onde esta se encaminhava, com um toque de poesia e tristeza pela recente morte de meu pai, no ano anterior. Sempre com insucesso de vendas, desisti da produção para comércio e entrei a fundo no trabalho de desenvolvimento cultural da sociedade, agindo diretamente com a população.

Em um de meus trabalhos de oficinas e difusão cultural pela Secretaria Cultural de Minas Gerais, fui enviado a Milho Verde-MG, minha atual residência, para tocar e oficinar durante o primeiro Festival de Inverno do Circuito Estrada Real. Com a hesitação de continuar vivendo neste ciclo vicioso de família, musica e bebedeira, e também com os primeiros traços de arrependimentos por momentos vividos, veio à idéia de me retirar para aquela pequena cidade. Em 1992, após o falecimento de minha mãe, um sentimento de angústia, ódio e confusão se apossaram de mim, tendo como resposta imediata o abandono de minha casa na capital, deixando para trás tudo aquilo que um dia me fizera completo, minha infância, idéias, laços, felicidades e tristezas, começado outra vida na cidade de Milho Verde. Na Rua onde vivi a maior parte da minha infância e juventude já não me traz felicidade como antes, a cidade cresceu bastante e tirou toda a tranqüilidade do lugar, recordo momentos inesquecíveis quando passo naquela rua. Minha casa foi Tombada pelo patrimônio histórico de Belo Horizonte, a fachada permanece a mesma, mas no seu interior foi modificada e hoje funciona na minha antiga casa apos longos anos abandonada, uma Igreja.
Esta é minha história, relatada com muita saudade e receio, da época certa e incerta em que vivi na Rua Guaicurus, 467 centro de Belo Horizonte.

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