Hoje percebo com clareza que assim como um bairro, uma cidade, um país qualquer, o mundo da Guaicurus possui camadas sociais bem definidas. A informação de que as mulheres que se prostituem nos 16 "hotéis" deste pequeno pedaço urbano e cobram no máximo R$ 20 por programa pode levar à falsa impressão de que são 600 mulheres mais ou menos similares, no físico, na idade, na fortuna e na desgraça. . A Rua Guaicurus é o baixo meretrício de Belo Horizonte, no centro da cidade. É mais que um cinquentenário, tolerado pela polícia e pela lendária sociedade conservadora mineira sem nenhum sobressalto relevante; e dela "escondido" sob a fachada de prédios antigos e opacos, salvo quando surge no noticiário um ou outro episódio de violência. O que, de resto, é hoje comum a qualquer centro urbano.
Neste momento é interessante inserir, de modo a ilustrar este resgate de memória, um novo interlocutor com suas estórias narradas e eternizadas em livro sobre a sua primeira experiência frente à prostituição: _“em primeira instância, no espaço urbano, na configuração de uma zona de meretrício “interdita” aos membros de boas famílias; uma interdição às avessas pois somente seria possível às prostitutas ascender à cidade – em Belo Horizonte a “zona” localiza-se na parte baixa da cidade, junto ao vale do ribeirão Arrudas, nas proximidades da antiga estação ferroviária – no lúdico e licensioso período carnavalesco. Entre os amigos, o “sinal” para irem à zona boêmia era: “Vamos descer?”(VASCONCELLOS, Tempo sempre presente, 1976, p.180). “Só a massa dos habitantes é que possibilita à prostituição espalhar-se por extensas partes da cidade. E só a massa é que possibilita ao objeto sexual embriagar-se nos cem atrativos que ele, por sua vez, exerce.” (BENJAMIN, 1991, p.84).
Em segundo lugar, apresenta-se o clichê do quarto da prostituta: a penumbra da luz vermelha, o boudoir, a origem cristã, a boneca de louça da infância nunca alcançada, o perfume barato.
Na Praça 7 encontramos duas moças sozinha, por coincidência fantasiadas de odaliscas, como Wanda no retrato. Responderam nossos esguichos com outros, entre negaças e risadas. Fundamentado na boa recepção, Zé Livramento, mais atrevido, iniciou o diálogo:
- Podemos encontrar vocês depois?
- Pode, uai.
- Onde vocês moram?
- Na Rio de Janeiro, lá embaixo...
Não percebi se Zé Livramento havia concluído alguma coisa do endereço que a mim escapara. [...]
Deixou-me. O ar pesava do cheiro de remédio mesclado ao do perfume de flores murchas. Mas intenso o odor de pó-de-arroz barato que, aliás, ainda se notava nos raios de luz infiltrando por frestas da janela fechada. Uma cômoda alta com potes e bibelôs em cima. Boneca grande vestida em cetim rosa e verde. Na cama uma colcha de crochê e, na parede sobre a cabeceira, um crucifixo com um cravo enfiado nos pés. Um abajur de seda vermelha franjada, penumbrava o ambiente, do criado-mudo ao lado da cama.
Conquanto tudo se apresentasse limpo e arrumado, o cheiro sufocava-me. De uma doçura a um só tempo melada e ácida, colava-se em mim como substância pegajosa, desagradável, renitente. Procurei identificá-los separadamente, na esperança de, reconhecendo-os, fazê-los menos desagradáveis. Desinfetante, água de colônia, álcool, pó-de-arroz, flor, sabonete...
[...]
Percebi, então, que o cheiro do quarto me acompanhara. Estava comigo; nas mãos, na roupa, no corpo, mergulhado em meu próprio nariz.
[...]
Não falamos de pagamento, nem de mais a respeito. Intui que, para Zé Livramento, a aventura não passara de banal e corriqueira. Não merecia entusiasmo. Pelo que não me atrevi a expressar-lhe o meu. Nem toquei no problema do cheiro que ainda me perseguia.
Por muitos dias senti-me orgulhoso da façanha. Cheguei a tentar manter o peito vaidosamente estufado como se alguma coisa verdadeiramente importante se tivesse a mim incorporado.
Como o peito negava-se a manter-se estufado, desisti da empreitada e passei-me a considerações mais prosaicas, relacionadas com minha recente aventura. Primeiramente indaguei porque as putas cheiravam diferente de pessoas normais. Como não obtivesse resposta satisfatória, passei ao capítulo seguinte das doenças venéreas. A esta interrogante possibilidade contestou-me a prudência que recomendavam-me providências enérgicas. (VASCONCELLOS, Tempo sempre presente, 1976, p.142-145).
A referência acima conhecida pelo interlocutor e seu grupo de amigos era o cabaré, (...) na zona “boêmia” de Belo Horizonte. Em ambiente refinado era possível encontrar par para danças, assistir a shows musicais, ou bebericar (pouco, consideradas as condições financeiras da estudantada), tudo sob os olhares reguladores da cafetina.
Mas para que a Rua Guaicurus fosse analisada, observada e esmiuçada por mim ainda com mais competência, decidi transformar minha casa, antes vazia, solitária e escura em um gabinete de curiosidades. Nele disponho tudo o que encontrei, guardei durante minha busca e que para mim tem algum significado, pois constroem o meu passado. Nesta coleção acabei por fundir os objetos úteis para a venda aos recolhidos do passado na busca de minha própria memória. Assim percebo que este espaço é a representação da minha linguagem simbólica, representa a minha capacidade de conhecer e interpretar a mim mesma, ao mundo. Por meio destes objetos transformei minha casa, mesmo ainda em ruínas, em um lugar de recolha onde tive meu passado resgatado.
Imagens: Fotos da maquete física com a ocupação da personagem
A disposição destes objetos na casa simboliza a minha lembrança recomposta através de um cômodo que foi totalmente reconstruído por mim utilizando os objetos que guardei durante todo este tempo.
Imagens: Fotos da maqute física com a ocupação da personagem
Portanto, por meio do meu quarto, reconstruí minha identidade completa e minha ideia de memória. É um espaço privado, sem pretensão de ser aberto ao público. Mas está de portas abertas, por, de certa forma resgatar a memória coletiva das pessoas que, assim como eu, se perderam no passado.
Imagens: Fotos do interior da maquete físca, caracterizando a reconstrução da memória da personagem.
Hoje afirmo com propriedade que...
Meu nome é Zélia Brasileiro. A Maria... estava apenas de Passagem.
Imagem: Maria da Passagem, ou melhor, Zélia Brasileiro
Autor desconhecido
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